Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe
de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o
tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente
dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela
melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil,
com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.
Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades
ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a
continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e
oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas
entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito
natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o
reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da
flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o
supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.
Completado o ciclo histórico, os bens serão
repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e
elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de
descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência
gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam
na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a
serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente,
a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem
erudição nem pretensão, celebrando o Advento.
A poesia escrita se identificará com o perfume das
moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros?
perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol
e das galáxias, aberta à maneira de um livro.
A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e
Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem
humilhação para ninguém.
Com economia para os povos desaparecerão suavemente
classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de
toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.
O trabalho deixará de ser imposição para constituir
o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores,
que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido.
Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado
na ordem do amor.
Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o
guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois
jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um
atalho invisível.
A morte não será procurada nem esquivada, e o homem
compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.
O mundo será administrado exclusivamente pelas
crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas,
a Universidade inclusive.
E será Natal para sempre.
Autor: Carlos Drummond de Andrade
Texto extraído do livro "Cadeira de
Balanço", Livraria José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1972.
Enviado por: Patrizia G.
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