Filme mostra
transformação de um homem e sua descoberta do que é essencial
A história de "Perdido em Marte" é bastante simples, mas
possui muita profundidade. O astronauta e botânico Mark Watney, junto com mais
cinco tripulantes, estão em uma missão em Marte. Mas uma tempestade de areia os
obriga a deixar o planeta e Mark fica para trás. Sozinho, ele precisa
sobreviver e para isso usa sua inteligência e seus conhecimentos em botânica.
Assim, começa uma corrida contra o tempo para salvá-lo.
O filme mostra a solidão e a
transformação de um homem, e sua descoberta do que é realmente essencial."O filme mostra a solidão e a transformação de um homem, e sua descoberta
do que é realmente essencial."
Cada minuto de vida é importante para ele. Isso pode ser comparado à
humanidade, que sempre esteve em busca de transcendência de sua condição animal
e da realidade humana - o que era visto nos povos mais antigos pelos ritos de
iniciação.
De acordo com psicólogo Joseph Henderson, "a iniciação é,
essencialmente, um processo que começa com um rito de submissão, seguido de um
período de contenção a que se sucede um outro rito, o de liberação. Assim, todo
indivíduo tem possibilidade de reconciliar os elementos conflitantes da sua
personalidade: pode chegar a um equilíbrio que o faça, de fato, um ser humano e
também, verdadeiramente, o seu próprio dono".
FOGUETES E PLANETAS DISTANTES SIMBOLIZAM NECESSIDADE DE LIBERTAÇÃO
É comum as imagens de foguetes
espaciais aparecerem com frequência em sonhos e fantasias de muita gente, como
encarnações simbólicas da necessidade de desprendimento e liberação, a qual
chamamos de transcendência."É comum as imagens
de foguetes espaciais aparecerem com frequência em sonhos e fantasias de muita
gente, como encarnações simbólicas da necessidade de desprendimento e
liberação, a qual chamamos de transcendência."
Por essa razão, as imagens do foguete espacial e do planeta Marte no
filme podem simbolizar essa necessidade intrínseca da humanidade por
transcendência de forma coletiva, uma vez que perdemos os ritos iniciatórios ao
longo do processo de evolução industrial e cultural. No entanto, isso ainda
permanece nas camadas mais profundas da psique coletiva como uma necessidade
imperiosa e urgente.
Carl Jung notou que o homem está em busca de espiritualidade. É algo
natural e inerente ao ser humano. Mas essa busca de espiritualidade e
transcendência se dá também pela união de forças opostas em nós, para que assim
encontremos o equilíbrio. Sendo assim, podemos observar na saga de Mark um rito
de iniciação. Ele passa por uma grande humilhação, fica só, enfrenta perigos
mortais, vive um período de contenção para só então seguir para a libertação.
Em termos pessoais, isso significa, de forma simplista, uma "saudade"
da presença da totalidade.
Segundo Henderson, a criança possui um sentido de totalidade ou de
integridade, mas apenas antes do aparecimento do seu ego consciente. No caso do
adulto, este sentido de integridade é alcançado através de uma união do
consciente com os conteúdos inconscientes da sua mente. Desta união, surge o
que Jung chamava "função transcendente da psique", através da qual o
homem pode alcançar sua mais elevada finalidade: a plena realização das
potencialidades do seu Self (ou ser).
Podemos, então, supor e concluir que a busca de vida fora da Terra e de
colonização de outros planetas simboliza a busca da alma humana pela
transcendência. No entanto, também é importante salientar que para ir atrás da
perfeição (ou melhor, da totalidade), devemos viver o "homem comum",
sem mutilação. E o astronauta aprende isso quando precisa começar a plantar
batata para não morrer. Em Marte ele vive com o mínimo possível, e assim retoma
uma época remota na qual a humanidade também precisava fazer o mesmo para
sobreviver.
EM MARTE, ASTRONAUTA NOTA IMPORTÂNCIA DOS VALORES FEMININOS PARA QUE
HAJA VIDA
Outro aspecto importante a se levar em conta é que a Terra e a sua
natureza têm no imaginário coletivo uma conotação de pecaminosa e ligada ao
corpo e ao feminino. Diferente do céu, que possui um aspecto de masculinidade,
religiosidade, espiritualidade e pureza. Ao longo dos séculos, a sociedade
ocidental judaico-cristã lutou contra o corpo e seus desejos e instintos,
buscando uma moralidade asséptica.
Em termos psicológicos, essa luta
contra o desejo e a natureza pecaminosa do corpo se estendeu em projeção para o
elemento feminino (o portador do desejo). E também contra o inconsciente, dando
ênfase ao ego e aos processos cognitivos. Não é a toa que simbolicamente o
planeta a ser colonizado no filme seja Marte. Ele foi batizado com o nome do
Deus da guerra romano, símbolo máximo da masculinidade e da força bélica, ou
seja, os aspectos do corpo com seus desejos estiveram durante séculos ligados
ao feminino. E a humanidade lutou contra isso, perseguindo as mulheres. Ao
estar em Marte, ícone da masculinidade idealizada pela sociedade ocidental, o
astronauta reflete sobre esses valores e percebe que é necessário integrar o
feminino com sua fertilidade, sensualidade e volúpia para que haja vida."Ao estar em Marte, ícone da masculinidade idealizada pela sociedade
ocidental, o astronauta reflete sobre esses valores e percebe que é necessário
integrar o feminino com sua fertilidade, sensualidade e volúpia para que haja
vida."
Sendo assim, o filme mostra que mesmo tentando fugir da natureza, ela
não pode ser ultrapassada. Dependemos da Terra e do alimento que ela nos
fornece como mãe zelosa, mesmo que possa ser bastante hostil às vezes. O mesmo
ocorre com o inconsciente, que também não pode ser dobrado, mesmo que por vezes
nos pareça ameaçador.
Nosso corpo possui instintos que não conseguimos controlar por meio de
nossa própria vontade. Veja que no filme a fome é algo impossível de ser
ignorada. No entanto, o astronauta se rende à natureza, em uma contemplação,
admiração e respeito por sua força.
A aventura de Mark não só lhe trouxe uma transformação individual, mas
coletiva. A obra mostra que todos os povos se uniram nessa empreitada do
astronauta e que uma interação dialética os uniu. A metáfora que o filme nos
deixa é de que antes de buscarmos fora a transcendência, devemos vivê-la dentro
de nós mesmos. E paradoxalmente isso só ocorre no cotidiano do homem comum, com
o trabalho, a rotina e tudo aquilo que nos mantém na vida humana. Somente
quando aceitamos nossa condição e começamos a ouvir os recados do nosso corpo e
inconsciente podemos encontrar a transcendência e começarmos a busca pela
totalidade.
Referências bibliográficas:
· JUNG, C., VON FRANZ, M. L., HENDERSON,
J. L., JACOBI, J. & JAFFÉ, A. O homem e seus
símbolos, 23 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
É analista Junguiana e especialista em Mitologia e
Contos de Fadas. Atua como psicoterapeuta, professora e palestrante de
Psicologia Analítica em SP e RJ. Saiba mais »
contato: hellenmourao@gmail.com
Revista Personare
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