(Imagem: Divulgação da peça A Alma Imoral)
Obra desperta
reflexão sobre fidelidades e traições
O livro A alma imoral, de
Nilton Bonder, tem alcançado sucesso por anos consecutivos, tanto por meio do
livro, como com a peça de teatro adaptada. E talvez seu sucesso se deva ao fato
de que a obra nos faz pensar de maneira assustadora sobre os conceitos vigentes
e sobre como muitas vezes nos enjaulamos nestes conceitos antes de buscarmos
significados mais verdadeiros para nossa alma.
Alguns questionamentos centrais se
referem a especificidades da cultura em que estamos inseridos (ocidental, que
recebe influência de valores norte-americanos e europeus, globalizada, plural,
adepta do estilo de vida fast, conectada por redes sociais.). Neste
sentido, ao se pensar em reflexões sobre A alma imoral e sobre
o tema deste texto - o poliamor - surgem imediatamente algumas perguntas. Trair
é errado? Alguns responderiam que sim, baseados nos argumentos de que trair
machuca o traído, rompe a confiança do casal, estabelece paranoias na
relação... Mas e se encararmos de outro modo esta pergunta, esmiuçando-a um
pouco mais? O que é trair, afinal? E trair a si mesmo, aos seus próprios
sentimentos, pode?"O que é trair,
afinal? E trair a si mesmo, aos seus próprios sentimentos, pode?"
POLIGAMIA E POLIAMOR: ACORDO DE UM LADO, AFETO DE OUTRO
Sabemos que existem países orientais em que é prática homens se casarem
com mais de uma esposa. Há grupos indígenas¹ que praticam a poligamia e a
poliandria (casamentos com múltiplos homens e mulheres). Alguns grupos
religiosos, como islâmicos tradicionais e judeus ortodoxos entendem a poligamia
como um sistema que preserva a espécie, permitindo que os homens procriem mais.
Todos estes entendimentos, no entanto, passam por reformulações
constantes, e se referem a conceitos culturais sobre casamento e não sobre o
amor. Poligamia não necessariamente implica poliamor, e o contrário também é
verdadeiro. Ter mais de um(a) esposo(a) relaciona-se diretamente a uma lógica
formal de estrutura familiar, sociedade, procriação, mas não dá legitimidade
aos sentimentos envolvidos nestas relações, que podem ser apenas de contrato
formal, e não de amor.
O poliamor, ao contrário, não presta contas ao Estado ou às leis, pois
não se refere à formalização legal de um casamento ou de uma união estável
(pode vir a ser), mas sim ao sentimento, ao afeto existente entre as partes. O
poliamor presta contas à alma, e apenas a ela, ou melhor, às almas envolvidas.
Por este motivo, poderíamos associar o poliamor a algumas palavrinhas mágicas,
como liberdade, verdade, completude, respeito, integridade e plenitude.
SUBMISSÃO A CONVENÇÕES SOCIAIS EM DETRIMENTO DA FELICIDADE PESSOAL E
GENUÍNA
Mas se o poliamor é tão libertador,
por que é tão difícil praticá-lo? Por que assistimos a milhares de pessoas que
se machucam em casamentos infelizes ou se sentem profundamente culpadas por
amarem mais de uma pessoa ao mesmo tempo?"Por que assistimos
a milhares de pessoas que se machucam em casamentos infelizes ou se sentem
profundamente culpadas por amarem mais de uma pessoa ao mesmo tempo?"
Voltemos ao início deste texto, quando apontamos os padrões culturais
geracionais que nos formaram. Se entendermos formação como algo a que devemos
referências (ou reverências?), é possível verificar a prisão a que nos expomos.
Há, nesse sentido, uma dose de
sacrifício pessoal em nome da manutenção de uma sociedade idealizada, em nome
da manutenção de casamentos, do crescimento "adequado" de filhos, do
"melhor" para todos. Freud já anunciava esta difícil equação em seu
livro O Mal-Estar da Civilização. O que escolher, afinal: o desejo
do sujeito ou o desejo da coletividade? Parece que há um falso conflito neste
sentido, pois a sociedade e a coletividade são constituídas de indivíduos, e se
estes sujeitos estiverem infelizes em sua subjetividade, não há como garantir
um coletivo em equilíbrio."a sociedade e a
coletividade são constituídas de indivíduos, e se estes sujeitos estiverem
infelizes em sua subjetividade, não há como garantir um coletivo em equilíbrio."
Este entendimento é fundamental para a compreensão de que os anseios
pessoais estão em diálogo com os sociais, e mais ainda, são estes anseios que
constroem e modificam a História, a partir de processo de amadurecimento
coletivo.
Portanto, chega-se a um momento histórico em que se é possível vivenciar
o poliamor, falar sobre isso, ter sonhos e expectativas a este respeito, não
ainda de maneira plena e totalmente aberta, mas há um apelo para se considerar
este caminho como legítimo. Cada ator social: eu, você, nós somos chamados a
reformular os contatos humanos a fim de que mais pessoas sejam felizes e livres
em suas formas de amar. Se amamos nossos pais, irmãos e amigos, dividindo nosso
tempo, atenção e afeto entre eles e tendo eventualmente ciúmes nestas relações,
certamente temos exemplos de como seria a prática de amores românticos
múltiplos e simultâneos. Não se trata de não ter nenhum apego ou ciúme, mas de
trabalhar e lidar com estes sentimentos, lembrando que o outro está ali ao lado
não por conta de regras, filhos, papeis, mas pelos atos mais belos da vida: o
amor e a felicidade.
A caminho do amadurecimento, o poliamor segue como uma possibilidade que
acena para um cenário de respeito e liberdade ao ser. E que vivam todas as
formas de amor e amar!
SOBRE O AUTOR:CLARISSA
DE FRANCO
É psicóloga e cientista da religião.
Atua na temática da morte (perdas, luto e suicídio) e no debate entre religião
e ciência, passando por temas como ateísmo e Astrologia. Saiba mais »
Revista Personare
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